A CAPA



Numa época em que temos certa dificuldade de encontrar músicas ou até livros com conteúdo que acrescente, provoque ou retire algo de nós, decidi não só fazer letras mais elaboradas, tentei fazer da própria capa do disco uma mensagem que fizesse as pessoas refletir. Sei que a música de certa forma alcança mais gente do que livros, já que o livro só existe quando abrimos e lemos, enquanto a música adentra em nossas casas, nossas salas, nossos quartos, nossa memória, rompendo quase que todas as barreiras físicas imagináveis. Se livros só existem quando abrimos, a imagem só existe quando podemos olhar para ela. Pensando nisso, decidi atacar em várias frentes (risos), trazendo o conteúdo desejado em cada uma das letras, mas o título do disco (Crônicas de um mundo moderno) seria sintetizado e explicado pela capa.

Para entendermos a imagem temos que começar por algo deste século no Brasil, voltar para o século passado no Vietnã, caminhar para Turquia e finalmente chegar ao presente momento. Veja que é uma viagem pelo mundo e por acontecimentos assombrosos em uma única imagem. É uma síntese de quão primitivos ainda somos.

1 – No fundo a imagem alaranjada é na verdade uma foto do pior acidente já ocorrido com a mineração brasileira, o desastre lamentável aconteceu no município de Mariana (MG) em 5 de novembro de 2015. O rompimento de uma barragem devastou o distrito de Bento Rodrigues com um imenso lamaçal. O acidente liberou cerca de 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração (óxido de ferro, água e muita lama). Estudiosos dizem que a cobertura da lama impedirá o desenvolvimento de muitas espécies vegetais, o que significa que boa parte da região se tornou infértil. Não foi só a vida vegetal, pois rios foram contaminados, de modo a vida aquática também foi prejudicada, já que muitos rios mudaram de curso, foram assoreados e perderam as matas ciliares. Além de tudo, pessoas morreram, outras perderam tudo, casas ficaram embaixo da lama e toda sorte de coisa ruim que um desastre desse tipo provoca.

2 – Na segunda imagem (foto feita por AP Huynh Cong “Nick” Ut) saímos do município de Mariana (MG) e estamos no povoado de Trang Bag, Vietnã no ano de 1972, a garotinha de 9 anos que corre desesperada é Kim Phuc, e ela não está nua por ser pobre e não ter o que vestir, mas porque teve seu vilarejo atacado com Napalm e suas roubas foram queimadas com sua pele por essa substância. Ela sobreviveu. A foto rodou o mundo, comoveu muita gente e praticamente acabou com a guerra.

3 – Saímos do Vietnã e vamos para Bodrum, na Turquia, esse garotinho afogado e morto na lama de Mariana, originalmente estava na supracitada praia e virou símbolo máximo da crise imigratória. Muita gente foge da guerra e acaba morrendo no mar. Neste caso uma embarcação síria naufragou e morreram, pelo menos, 9 sírios que saiam de Bodrum e tentava chegar na ilha grega Kos. Os jornais exploraram a foto para pressionar as autoridades europeias a mudar sua política de imigração:

“The Guardian”, britânico, disse que as fotos levaram para as casas das pessoas “todo o horror da tragédia humana que vem acontecendo no litoral da Europa”.

O americano “Washington Post”  classificou a imagem de “o mais trágico símbolo da crise de refugiados do Mediterrâneo”.

4 – E por último um contemporâneo nosso, bem vestido, casado, bem-sucedido, usando toda a desgraça histórica para aparecer nas mídias sociais. É a típica prisão da modernidade compra-se algo que não se precisa, para agradar um monte de gente que não se conhece com o intuito de mostrar ser alguém que não é. Observe que a marca do aparelho móvel é “vanitas” do latim: vaidade. Não importa se o mundo está chafurdando na lama, ou se crianças são queimadas vivas ou afogadas, pouco importa o conjunto de desgraça ou o pacote de imbecilidade que nos vendem diariamente. O que importa é ficar bem na foto.

A crítica da faixa um (Era digital), ou a tensão aflita da faixa 4  que também dá nome ao disco (Crônicas de um mundo moderno), de certa forma anunciada na visionária faixa 8 (Passos largos para o inferno). Enfim, tudo se resume na vaidade e na nossa indiferença em relação ao sofrimento do outro. Não é atoa que chamamos o mundo digital de “rede”. Só não percebemos que redes não conectam, redes pescam, prendem. Fico me perguntando quando vão perceber que as modernas redes e as modernas grades são no fundo a mesma coisa.



Por Pierre Logan
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