DESERTO



Sozinho. Desta vez ele tinha a certeza de que seria assim o resto da sua curta vida. Pegou uma mochila e deixou tudo para trás, trazendo consigo apenas lembranças boas e o sentimento de que até ali muita coisa valeu a pena. Apenas com as roupas do corpo ele já não carrega nenhum livro nas mãos, todos os livros do mundo estão dentro dele. Foi assim que ele entrou no deserto.

Uma gota de suor sai do seu pescoço, desce pelas suas costas e de alguma forma faz ele lembrar das carícias da mulher que ainda ama, mas por alguma razão deixou-a livre para ir embora. Sabe que os dois saíram perdendo, pois um perdeu-se do outro. Se a vida tivesse realmente algum sentido – pensava em silêncio – seria para frente. Por isso decidiu caminhar.

O sol parecia determinado a queimar tudo o que caminhasse debaixo dele. O peso era demasiadamente demais para ele. Ele já havia deixado tudo para trás e talvez, se fosse possível, se livraria do corpo também. Seu espírito não cabia mais dentro daquele recipiente de carne. Fazia anos que não dizia uma única palavra. Ele de fato estava só, pois deixou todas as pessoas para trás. Mas quando nos sentimos sozinhos costumamos dizer algumas palavras em voz alta para aplacar, pelo menos, um pouco da solidão. No caso dele, não ousava pronunciar sequer uma palavrinha monossilábica para si mesmo. Ele era o silêncio.

A brisa acariciava seu rosto e ao mesmo tempo jogava areia nos seus pensamentos. O som dos seus passos afundando na areia era a única coisa que rompia o silêncio daquele deserto. Quantas batalhas venceu sem sequer querer lutar? Quantas cicatrizes seu corpo cansado e ferido ainda teria que suportar? Por que Deus não permitiu que ele encontrasse a paz, se cumpriu com todas as vontades do Pai. Algo dizia que não importava o quanto aguentasse caminhar; Deus não estaria do outro lado do deserto.



O deserto não tem esquinas, mas algo dizia que ele estava perdido. Pensou que talvez fosse árido demais para aquele deserto. Pequeno demais para o imenso deserto que havia dentro de si. Pensou em uma frase: “aqueles se elevam demais parecem cada vez menores aos olhos daqueles que não conseguem voar” e lembrou que, quando criança, as pessoas costumavam apontar e dar risada dele. Sempre achou que havia algo errado consigo mesmo. Depois de algum tempo, começou a pensar que estava subindo a montanha da existência e como sabemos, o destino de quem não consegue subir na vida é apontar para aqueles que estão subindo. Olhou para o horizonte. Infinito.

Finalmente encontrando um lugar para sentar ele apenas olhou para pedra, mas lembrou que não tinha direito ao descanso. Seguiu em frente. A noite sempre chega expulsando o calor do deserto e trazendo um frio congelantemente pesado. Já fazia semanas que não dormia e mais de 40 anos que caminhava pelo deserto. De alguma forma ele tinha um rumo; sempre andava para frente.

Encontrou a maior montanha que já tinha visto na sua vida. Era imensa. Parecia escalar o ar e transcender nuvens mundanas em direção aos céus. Começou a subir. Os músculos já não aguentavam caminhar, quem diria escalar. O corpo tremia, as mãos sangravam, arranhões anunciava a chegada de novas marcas no seu corpo. Subiu, subiu. Algumas vezes sua musculatura cansada não aguentava o peso do seu corpo e ele escorregava, mas sempre foi teimoso, persistente e irritantemente resistente. Subitamente um pensamento escorregou das gavetas rochosas de sua memória e o fez lembrar que certa vez, numa dessas depressões das madrugadas ocultas de nossa alma, ele pensou em se enforcar com uma das cordas que tinha na sua casa. Penou que desta vez usaria a corda para escalar. Principal lição da lei da gravidade: “para cima (caminho certo) é sempre mais difícil que para baixo (caminho errado)”. Se é que existia um caminho errado. Dias subindo. Não sentia fome. Não sentia frio. Não sentia nada além de cansaço e vontade de continuar subindo. Vez ou outra tinha a impressão de que seu espírito estava arrastando seu corpo montanha a cima.

Era loucura. Não se via mais o chão. Nuvens era a única coisa que se via daquela altura. Pensou que quando chegasse ao topo poderia se atirar e sentir algo novo e verdadeiro antes de morrer pelo menos. Ele não queria ninguém chorando no seu túmulo mesmo. Com os anos foi se afastando de familiares, amigos, amores e coisas. Tudo ficou para trás. Ele falhou ao tentar se livrar de si mesmo e acabou deixando todos num passado cada vez menos claro.



Chegou ao cume. Mas ficou assuntado. Era um tipo de prenúncio do fracasso da humanidade. Era um tipo de inferno particular. Era atormentador. Era confuso. Era doloroso demais. Ele estava no topo da montanha, mas estava também diante de algo muito maior separado por um grande abismo. Ele gritava algo. Socava a rocha com força. O desespero era constrangedor diante de si mesmo. As veias se apresentaram com veemência em toda sua face. Ele gesticulava com movimentos desconexos como um epilético tendo um ataque. Olhava para cima, onde observava a humanidade sorrindo, alegre feliz; com as pessoas que ele mais amava na frente. Todos eles. Todo mundo caminhando feliz e comemorando um tipo de vitória. Ele gritava, chorava lágrimas de sangue, mas não conseguia se fazer entender. Caiu de joelhos no chão rochoso e fez seu último pedido a Deus: Mostre a eles, Pai, que “confundiram o topo desta montanha com a beira de um precipício”. Salve-os. Ninguém sabe o que está fazendo.




Por Pierre Logan
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Comentários

  1. Já perdi as contas de quantas vezes o li. Ao final de cada leitura perco o folego, como se estivesse o acompanhando...

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