A DAMA E O GUERREIRO
Curioso como a vida marca
encontros. Ela não combina conosco e nem nos pede permissão, deve
ser por isso que dizemos que a vida não é necessariamente nossa.
Ela é uma sucessão de acontecimentos que nos empurra em direção
ao desconhecido. Há quem acredite que seja somente um intervalo
entre o nascimento e a morte. Sem saber esses dois estão provando o
contrário.
Perdão. Ainda não expliquei o
que está acontecendo. Um andarilho passou por mim nesta madrugada e
me pediu abrigo. Disse que não tinha nada para compartilhar além de
algumas experiências vividas por ele e transmitidas a ele através
de conversas, canções, leituras e rituais. Eu estava meio que
entediado com a insônia que me desgovernou durante umas madrugadas,
por isso aceitei. Dei a ele um pouco de vinho, queijo, algumas
azeitonas e sentei-me ao lado daquele desconhecido. Ele ficou algum
tempo em silêncio e esvaziou rapidamente duas taças de vinho.
– Vai chover em breve! –
Afirmou olhando para o céu que não parecia concordar com a
afirmação e fazia questão de mostrar-nos todas as estrelas que o
olho humano poderia enxergar sem ajuda de acessórios.
Cada minuto de silêncio me
deixava mais curioso. Observei com cuidado a figura do andarilho que
passeava pela minha casa como um morador antigo. A única coisa que
parecia chamar a atenção dele eram os livros. As vestes pareciam de
um monge franciscano da idade média. Estava com olhos cansados, pele
cansada, expressão de cansaço, mãos cansadas e até mesmo o tecido
da roupa parecia cansada. Não me lembrava se ele tinha batido na
porta e pedido para entrar ou se tinha aparecido subitamente na minha
cozinha. Nem sabia se aquilo estava mesmo acontecendo ou se estava
sonhando. É que quando a gente não dorme passa a ser enganado pela
nossa cabeça. O jejum de sono é quase que um tipo de droga que te
leva a lugares de sua mente que você desconhece.
Ele sentou-se num canto do quarto
e começou a sussurrar algo que para ouvir tive que me aproximar
bastante. Sentei no chão e ficamos tomando vinho alguns momentos em
silêncio. Depois de alguns minutos ele decidiu iniciar uma história
curiosa que me envolveu completamente. Ele iniciou dizendo que eu
estava na verdade sonhando. Disse que naquele momento, as dimensões
estavam sobrepostas e que eu havia saído de mim para ter com ele em
outra parte do universo. Sorri meio desconsertado e não consegui
deixar de pensar como permiti que um estranho simplesmente invadisse
minha casa, tomasse meu vinho e balbuciasse sobre universos
sobrepostos. – “Na verdade, você deve estar se perguntando”…
– Cortou meus pensamentos como facas lançadas por um especialista
e continuou:
– “Você deve estar se
perguntando o porquê de deixar um estranho simplesmente invadir sua
casa, tomar seu vinho e balbuciar sobre universos sobrepostos, mas
não se preocupe; como todo sonho, este só se mostrará como sonho
quando você acordar. Concentre-se, garoto, e note como a dama passa
suavemente a mão pela sua face. Fechei os olhos meio que sem querer.
Parecia um transe, mas feito tão suavemente que não se percebia.
Era como se eu acompanhasse a rotação da terra.
De repente um calor tomou o meu
corpo e meus sentidos acusaram a ausência de luz no ambiente. Abri
os olhos e notei que não estava mais no meu quarto. Vertigem numa
hora como essa é natural. Notei uma garrafa de vinho no chão,
queijo, azeitonas, uma pequena caixa de palitos para dentes com 100
unidades e uma mulher sorridente no rótulo, observei isso tudo meio
que no escuro. Havia um aparelho móvel recebendo carga, e dois sofás
muito próximos. Olhei para cima porque tenho essa mania, não sei o
porquê, observei a ausência de forro e me senti em casa. Senti
também que já estivera naquele ambiente. Olhei mais uma vez ao
redor e me aproximei silenciosamente dos sofás colocados um de
frente para o outro. Um homem de aproximadamente trinta anos parecia
dormir profundamente enquanto uma mulher o acariciava em silêncio,
no escuro. Observei com um pouco mais de cuidado. Nova demais para
ser mãe dele. Ela estava acordada. Ele dormia.
Não conseguia enxergar muito bem porque tudo estava mergulhado no escuro, mas as pequenas frestas das telhas e algumas luzes de aparelhos eletrônicos ligados na tomada me permitiram ver alguns detalhes. A primeira coisa que notei no homem foram suas tatuagens. Contavam a história dele. Sim. Aquele cara tinha se metido numas poucas e boas. Cicatrizes espalhadas pelo corpo todo. Algumas pareciam mesmo feitas com fogo. Minha cabeça buscava as referências e se perdia entre Prometeu, fogo dos deuses, os sete selos, batismo com fogo etc., mas não cheguei a uma conclusão. Notei marcas de tortura, cortes grandes e pequenos feitos com facas e até uma perfuração que me parecia ter sido feita por arma de fogo. “De onde eu conheço esse cara? ”. Pensei rapidamente, mas fui tomado por uma sensação de que na verdade eu conhecia a situação inteira e não só o indivíduo deitado. A dama o acariciava com tanto cuidado que não pude deixar de pensar mais uma vez que ela parecia ser nova demais para ser mãe dele.
De repente ela rouba um beijo do
homem adormecido. Não é mãe dele. Seriam amantes? Seriam marido e
mulher? Ele parecia cansado demais e ela cansada de tudo, mas não o
suficiente para impedir que velasse o sono dele. Ele estava deitado
no sofá, ela as vezes se ajoelhava no chão para colocar seu rosto
perto do dele, as vezes abraçava sua cabeça e vez ou outra dizia
baixinhos: “vida”. Ela parecia ama-lo. Ele parecia não estar
ali. O corpo parecia ter sido abandonado pelo espírito. Ele me
lembrava alguém. Ela eu não podia dizer, pois passava a maior parte
do tempo com a cabeça abaixada, repousando sempre sua cabeça no
corpo dele.
Conheço esse cara de algum lugar.
Não sei se o vi num filme de cavaleiro…. Não sei se saiu de um
dos meus livros…. Na verdade, ele me lembra alguém que conheci na
Inglaterra…. Não pode ser. A aparência dele varia entre um
oriental, um nordestino e outra coisa que não se pode identificar….
Ela parecia ser uma mulher experiente, passava dos trinta, mas
parecia mais nova. Tinha jeito de ser mãe. Impossível não notar a
facilidade de cuidar. Só uma mãe poderia cuidar com tanta
despreocupação com relação a si mesma.
Demorei alguns minutos para
entender que na verdade aquilo tudo era uma entrega. O guerreiro
estava cansado das batalhas e tirou sua armadura numa prova de
confiança e amor. Observei que aquela armadura nunca tinha sido
tirada antes. A dama não só velava o sono do guerreiro, ela o
envolvera em seus braços e na escuridão daquela sala para o
proteger dos maus sonhos. Ele estava finalmente em paz. Despido das
armas, armaduras, memórias, preocupações ele estava literalmente
desarmado. Era muito poder entregue nas mãos de uma mulher tão
pequena. Mas ela era grande. Ela era mãe. Não era mãe dele, no
entanto, notava-se que tinha tido filhos, ou filhas. Não tinha como
saber. Talvez sua prole estivesse no quarto ao lado dormindo. Aquela
pequena mulher gigantesca em energia era a única pessoa acordada na
casa. Olhei mais uma vez para o guerreiro. Sono profundo. Olhei mais
uma vez para dama. Cansada e feliz por estar ali. O que ele seria
para ela? O que ela seria para ele? Algo acontece. Algo parece me
tirar da sala. Não quero ir. Quero saber de onde conheço esse cara…
o andarilho aparece subitamente no ambiente escuro, ainda com uma
taça de vinho e me diz que é hora de acordar. Depois diz com
aqueles sussurros graves:
Você já viveu tempo demais.
Morreu quantas vezes foi preciso. É sua natureza. Você recorda de
umas coisas e esquece de outras coisas, no entanto, acorda em sua
época e relembra. Sai perdidamente pelo mundo buscando encontrar as
respostas que já tem. Sou um guardião dos sonhos, rapaz. Faz tempo
que tento te visitar para termos uma conversa, mas sua natureza faz
com que seus próprios sonhos te mantenham acordado. Esses sonhos eu
não posso guardar. Você encontrou na sua vida as melhores mulheres
da terra, mas esse mundo não entenderia uma palavra sua sequer, pois
está envenenado. Lembre-se que nesta época, garoto, você pode
odiar várias pessoas ao mesmo tempo, mas amar uma só pessoa por
vez. É injusto para alguém que não cabe dentro de si mesmo. Saiba
que não te visito com mais frequência porque quando tu estás em
batalha não ouso te desarmar, pois tu sabes quantas vezes tua
insônia salvou tua vida em outras guerras. Tu sabes que a traição
é que te matará no futuro e que ninguém pode te ferir em batalha.
Tu foste escolhido pelo Pai e tens uma missão. Sei que tu consideras
um privilégio terrível e que não te furtas do bom combate. Os
anjos te escutam em silêncio. Os Deuses te abençoam com frequência.
Os humanos tendem a caminhar entre o amor e o ódio que sentem de ti.
Estás condenado ao combate eterno. Filho de marte, permita que eu
vá, mas se permites que te peça algo, peço apenas que tire tua
armadura de vez em quando para que eu possa te visitar. Obrigado pelo
vinho!
Algo me puxa para baixo e num
turbilhão de coisas que passam por mim, noto uma espécie de buraco
que puxa todos os objetos da sala para dentro. Tento me segurar, mas
não há nada que não esteja sendo puxado além da armadura que
repousa do lado do guerreiro. Luto para chegar até ela numa
tentativa desesperada de não ser puxado para dentro daquele ralo de
energia desconhecido. Não há mais nada… Deus….Seguro firme na
armadura e num solavanco eu acordo ainda nos braços da minha dama.
Linda. Não a vejo no escuro, mas sei que é linda. Ele me olha. Não
vejo seus olhos, mas sei que ela me olha. – “Vida, você dormiu,
meu amor! ”. Levanto no meio da escuridão. Sinto que o dia ainda
não amanheceu. Beijo minha dama. Digo que a amo. E peço que me
deixe ir. Eu precisava entender aquele sonho. Eu precisava dela perto
de mim. Eu precisava voltar ao combate para que ela dormisse em paz.
Meu coração acelerou e por dentro da armadura meu amor queimava.
Ninguém te fará mal, meu amor. Nada pode nos deter. Impensável, é
impossível, é passional. Você me roubou de mim por duas horas e
finalmente posso dizer que tive paz. Minha dama, saudades de ti.
Espero que a vida marque outro encontro contigo.
Por Pierre Logan
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