A CASA DAS TRÊS MULHERES




Fazia tempo que o viajante caminhava só. Mesmo quando tinha alguém do seu lado, a sensação era o de que ele estava sempre sozinho. Era visível que sempre existiam pessoas por perto. Gente por perto nunca faltou. Mas quem disse que companhia tem a ver com pessoas por perto?! O passado era uma bagagem e um sistema de propulsão espiritual que o deixava cada vez mais longe de tudo. Desenvolveu uma extrema capacidade de deixar tudo e todos para trás. “Vida que segue”, dizia de olhos fechados sempre que desistia de coisas que o impediam de caminhar.


Sua vida passou por tantas fazes difíceis, ele passou por tantas coisas assombrosas que teve que se reconstruir do nada, se recriar, começar do zero e nesse processo de construção e desconstrução de si mesmo; ele aprendeu a desaprender. Certo dia foi completamente destruído. Não sobrou nada. E foi do nada que Deus criou todas as coisas.

No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus (João 1;1).

Do nada ele se reergueu, mas não era bem um reerguimento porque a pessoa que caiu e foi reduzida a nada, não foi a mesma pessoa que se levantou. Mas todos viram quando estava de pé. O mundo deixou de “morder”. Ele passou a desdobrar a realidade a sua volta. Era agora um agente transformador de seu meio. Algo novo. As pessoas estranhavam e diziam que ele era estranho, louco e adjetivaram um homem que não conheciam. Não demorou muito para que algumas pessoas passassem a perceber que aquela loucura parecia uma normalidade há tempos esquecida pela maioria das pessoas. “A normalidade é coisa rara”, dizia sorrindo quando sua percepção acusava a confusão linguística entre o ‘comum’, o ‘normal’ e o ‘banal’. A verdade é que ele foi criado do nada pelas mãos do Arquiteto do universo que devolveu sua alma ao mundo dos vivos com uma missão.

E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não compreenderam (João 1:5).

Como o “lar do passarinho é o ar e não o ninho”, ele voltou a caminhar. Suas esperanças estavam no caminhar, nos sentidos abertos para o universo que fechava os braços celestiais para confortar seu coração a fim de deixa-lo aquecido. Ele seguia lendo, ouvindo, tocando, vendo, degustando, cheirando, vivendo. Caminhava com a vida, situação, pessoas e palavras:

Não é o ninho o lar do passarinho.
Do passarinho, o lar é o ar.
É no ar, plainando, e no ar, traçando as
suas rotas, é no ar, desbravando as suas
travessias, que vivem os passarinhos”.



Seguiu sozinho com abraços verdadeiros, falsos, abraços quentes e frios, sorrisos espontâneos e forçados, socos e tapas, beijos e mordidas, olhares de todos os tipos. Seguiu com amores, desamores, caos, ordem e silêncio; pessoas, passadas e presentes; gente gentil e gentalhas, sonhos, insônia e pesadelos, coragem, vontade e medo, busca abandono e perdas; perdeu-se, achou-se e se entregou; se devolveu, envolveu, se envolveu e resolveu se devolver a si; ficou mudo, mudou-se e modificou para finalmente converter tudo em palavras…. Era um homem sozinho bem acompanhado.

Certo dia seus pensamentos correram como geralmente correm os sonhos. Sem controle. Ele pensou que a palavra “lar” significa abrigo. Lar, lembrou-se bem, veio de lareira. Chamaram assim porque as primeiras famílias do mundo se reunião nos primórdios para se aquecerem na beira do fogo que era mantido aceso o tempo todo. Quente como uma família. Foi assim que fez os juramentos de proteger sua família e estender essa proteção aos amigos porque eles também são bem-vindos ao lar, que vem de lareira, que serve para aquecer a vida. Correu mais ainda.

Sua vida era corrida e na corrida alcançou parte de seus objetivos. Nada parava na sua vida corrida, mas num dia decidiu parar em uma parada e foi pensando (“porque quem pensa, pensa melhor parado”), que ele reparou que estava na hora de dar uma parada. Reparando bem no que tinha pensado, decidiu pedir abrigo. Não existe nenhum lugar no mundo melhor que os braços de uma mulher gentil. Não teve muita sorte porque neste mundo onde as pessoas trocam o brilho dos olhos pelo clarão das telas dos aparelhos móveis, quase ninguém estava com as mãos desocupadas para abraçar. Mas, ele desdobrava a realidade em sua volta e transformava seu meio. Apareceu nas telas, nos lugares, nos recantos e cantou. O mundo o viu brilhando mais que as telas porque o brilho dos olhos funciona com a bateria da vida que dura mais que qualquer bateria e tem um propósito muito maior.

Muitos tentavam entender, mas as trevas não compreenderiam a luz, certo? Até que os olhares se cruzaram exatamente através das telas que brilhavam e apagavam a magia do mundo. O amor é sempre mais forte. O amor apagou todas as luzes e fez as coisas deixarem de ser tão simples. Ele relembrou dos pássaros e se pôs no caminho, no ar, no caminho para ver o brilho dos olhos sem nenhum tipo de filtro. Andou, correu pelas vias de mãos duplas em direção ao infinito. Um ser humano finito correndo pela finitude em busca do infinito. Nada fazia sentido.

A vida lembrava sempre que em toda pessoa ele achava uma prisão. Até que conheceu a mulher que andava pelo mesmo caminho:

– Oi!

– Olá!

– Não é puxando o saco não, mas te admiro.

– Sei que não é, você não tem jeito de quem puxa saco.

– Sério, eu te admiro!

Ele não costumava admirar ou não admirar. Apenas vivia. Mas desta vez ficou admirado com a sinceridade da moça. Admirou-se sim e mirou na questão irrefletidamente para perceber o paradoxo aparente. Ora, não foram as palavras porque ouço um “eu admiro você” pelo menos duas vezes ao dia, mas a sinceridade é o diferencial no caso. O elogio era trivial, a sinceridade dita não era.

– Oi!

– Olá!

– Você é um cara ocupado. Não vou te atrapalhar.

– Obrigado! Espero que esteja bem.

– Estou bem. Obrigada! Tchau!

“Gentileza é fundamental”. Gentileza sincera é do divino. O mundo gira enquanto o sol permanece no mesmo lugar e, aparentemente, o sol não sabe que a terra girou. Brilha magnificamente indiferente aos nossos passos. Passando o tempo passado até chegar a um presente desembrulhado pelas verdades ditas eles se encontraram na beira do caminho. O sorriso fez questão de iniciar a conversa. O abraço pontuava perfeitamente o silêncio dos olhos que se fecharam para olhar para dentro. Apertaram-se um pouco mais, soltaram-se assustados porque por um milésimo de segundo tiveram a leve sensação de que estavam se fundindo e transformando-se em um. Alguns minutos na presença do caminhar e já eram velhos amigos. Abandonaram o caminho para passear, visitar pessoas e caminhar um pouco mais.

– O que há? Você não parece bem, moça.

– Nada. Não sei se as outras almoçaram.

– Vou te levar lá.

– Certo.


Foi assim que conheceu pela primeira vez as outras garotas. A mais velha representava a introspecção, a razão silenciosa dos que ainda não se entregaram ao mundo dos homens. A mais nova representava a inocência, a alegria distraída dos que ainda não entenderam bem os monstros que andam devorando o mundo. Foi quando ele olhou para a rainha da casa, a moça do caminho, que havia o levado até lá para apresentar as outras duas e percebeu que ela representava a experiência, a força e a autoridade dos que já passaram pela introspecção, razão dos que ainda não se entregaram ao mundo e  ao mesmo tempo representava a alegria distraída dos que não entendem os monstros, mas aprendeu, converteu tudo em conhecimento, ganhou força, cuidou, lutou, perdeu, reergueu-se e aprendeu a ser feliz com o calor daquele lar que havia mantido por tanto tempo com sua sagacidade e capacidade de ser verdadeira sempre. O viajante percebeu quão grande era aquela pequena mulher. Sim, agora ele a via como mulher.

A moça introspectiva tinha seu mundo particular e quase nunca sentava à mesa. Ele a sentia através das paredes e sua presença discreta era algo que o agradava, apesar de lamentar não poder vislumbrar visualmente sua beleza. Era uma garota tão linda quanto a mulher, aliás, bem parecida apesar de bem mais nova. A moça inocente, que vivia alegre, contagiava tudo o que tocava e não existiu um único momento que não conseguiu arrancar um sorriso daquele viajante. Ela era um anjo. Ele a amou no primeiro momento. A mulher era a figura materna das outras duas, pois sua postura, retidão, carinho, atenção e cuidado o tomaram completamente. Os sinais elétricos transmitidos dela para ele eram constantes. Ele teve momentos felizes ali.

O mundo foi ficando menor. A casa transformou-se no mundo. Uma mistura gostosa de introspecção, alegria, razão, cuidado, respeito, silêncio, sorrisos e gargalhadas. Era bom demais para ser mentira. Sua cabeça acelerou, seu coração disparou, ele parou e reparando bem na situação percebeu que o calor da sinceridade havia acendido a lareira. Ele estava aquecido pelo lar. “Deus, isso é um lar, um ninho e um caminho! ”, pensou confuso, mas infinitamente feliz. A casa das três mulheres foi o fim da linha de uma longa jornada de batalhas pelo mundo? Teria ele transformado sua realidade a tal ponto que encontrou em solo natal sua felicidade? Não acreditava com a cabeça, mas é o coração quem realmente entende dessas coisas.

A casa era simples, mas tinha tudo o que se precisava. As pessoas eram simples, mas eram tudo o que se precisava ser. O mundo era complicado, mas simplificou-se por não ser necessário entende-lo para amar aquelas mulheres. Nas noites escuras que jamais entenderiam a luz, ele dormiu. “Deus, que saudade de dormir! ”, ele pensou depois de eternas duas horas de sono. O melhor lugar do mundo são os braços da mulher amada que ama gentilmente. A reciprocidade tornou-se uma constante e o mundo não entendeu. Nem precisava. A aprovação mundana nunca foi uma condição sine qua non. O amor era a voz predominante da casa.

A mulher viajou com o viajante para lugares bonitos. Presenciou situações nas vias, estradas e ruas escuras. As moças também participaram um pouco do caminhar. Mas não importa o quanto se caminhe no mundo, fora do mundo e nem os corredores do universo infinito. Não importa o quão o ar seja bom para o passarinho, ele volta para o ninho sempre. Ele repousa. O ar é o caminho. O lar é o ninho. Não importa quão gigantesco seja o caminho, o universo, o mundo, os problemas, nem a beleza das flores, nem as paisagens, nem nada que se veja no caminhar; a gente sempre volta para casa.

Foi assim que o viajante olhou por cima dos prédios, avenidas congestionadas da cidade que constrói e destrói sonhos e não sabendo se as três mulheres são seu lar agora; pensou que poderia ser lar para elas. Sorriu, agradeceu a Deus pelos momentos e disse sussurrando para si mesmo, quando percebeu que não tem como perder no final: “ a gente sempre volta para casa”.


Por Pierre Logan
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