A GATA NÁRNIA





Depois de algumas horas de leitura, me sento na janela com uma xícara de chá e tento lembrar de coisas que não me entristecem. Sou um cara feliz, mas minha felicidade é humana, infelizmente. Reflito sobre muitas coisas que preciso para ser feliz. Nós humanos somos criaturas complexas e nosso desejo é insaciável. Não há beleza na nossa complexidade, olhando pelo lado que quase sempre olho. Somos criaturas complexas com complexo de grandeza. Sem querer e sem ter nem ideia disso, esfregamos na nossa cara de geração para geração que somos capazes de dominar elementos, entender animais, domesticar bichos, mas quase nunca somos capazes de entender a nós mesmos. Os gregos até tentaram avisar: “conhece-te a ti mesmo”, mas quando alguém se entendeu na nossa história acabou ficando entre a justiça e a vontade popular. Obviamente nunca daria certo. Escolhemos Barrabás mais de uma vez na história humana.

De alguma forma estamos presos a isto aqui. Estamos necessariamente presos às nossas próprias necessidades de querer as coisas. Precisamos das coisas para vivermos felizes e nos cansarmos da felicidade que temos para querer mais. Sempre estamos querendo mais. É assim com a maioria. É uma característica predominante da nossa raça. Eu mesmo não sei muita coisa sobre mim por mais que eu tente me analisar sempre, mas aprendi muito sobre o que somos nós humanos com uma gata que tive há muito tempo. Seu nome era Nárnia.


Não lembro qual o ano que a levaram embora, mas lembro de praticamente tudo sobre ela. Era uma gatinha linda, de cor cinza, da raça Chartreux. Na época eu não sabia muita coisa sobre ela. Hoje sei que gatos dessa raça precisam se exercitar e por esse motivo eles precisam de bastante espaço. Nunca havia parado para pensar o motivo que fazia ela sempre acordar cedinho e ficar saltando e balançando com suas patinhas as chaves que eu sempre deixava pendurada na fechadura. Descobri tarde demais que felinos desse tipo adoram brincar em ritmo frenético, mas detestam sentirem-se presos. Esse era o motivo que a coitada sempre ficava brava quando eu tentava segurá-la demais num lugar só. Nárnia, como é típico do Chartreux, não gostava muito de miar, era discreta, e seu miado era baixinho e delicado. Linda.

Foi com minha gatinha magrela que aprendi muita coisa sobre a felicidade. Ela encontrava o motivo na beleza da repetição diária. Ela sabe que é o que é e não precisa ser outra coisa. Quando eu estava preocupado com tantas questões, desde a verdade do universo até as contas para pagar, ela estava indiferente. Dona de si, ela me ensinou que nossa busca imbecil pela tranquilidade jamais nos dá tranquilidade. Usamos a correria para justificar uma paz futura, mas nada e absolutamente nada nos garante paz. Temos que estar em paz conosco. Se houver uma solução, então, devemos abraça-la e se não houver solução, não há o que abraçar. Nenhum dos dois casos é motivo para se desesperar. A gata estava certa e não tinha nenhuma intenção de estar certa. Era como se dissesse do seu jeito “eu sou”. Nada, e, absolutamente, nada obrigava ela a fazer o que não queria. Senhora de si.

Cinza-azulada, ela sabia que era a gata mais linda do bairro, mas nem isso importava. Gatos vivem para eles. Não se interessam em bajular, serem amigáveis, mudar seu jeito para agradar. Não importa se você alimenta ou não alimenta seu gato, ele vai cobrar comida quando quiser comer e pode apostar, se você não o respeitar pelo que ele é, ele desaparece sem olhar para trás. Sabe se virar. São ferinhas e se engana quem acha que são domesticáveis.


Nárnia mesmo era uma caçadora nata. Desde novinha já brincava de caçar meias e sapatos. Sumia por um tempinho e lá estava ela nas ruas, muros, telhados aterrorizando os pardais. Vez ou outra aparecia com alguma vítima na boca. Judiava das pobres lagartixas. Pequenos insetos eram estraçalhados pela gata guerreira. Afiava suas garras nas pernas da mesa, cadeiras, colchões, caixas de papelão que estivessem pela casa. Não ligava. Você reclamava com ela, ela corria feliz e depois lá estava ela novamente fazendo exatamente a mesma coisa que você pediu com veemência para ela não fazer. Ela me desarmava. Eu queria ficar bravo, sentia que tinha o direito, precisava gritar, ameaçar, mas acaba respeitando a gatinha. Ela era simplesmente ela e deixava claro que não mudaria por nada. Gatos impõem sua vontade e como todo mundo que não faz questão de agradar, nem de dar explicação, segue seu caminho enquanto o mundo desaba atrás deles. É o tipo de atitude egoísta que você respeita.

Quem disse que ser egoísta é ruim? Alguém me disse que deveríamos nos preocupar com os outros. Eu acreditava nessa bobagem até que aos poucos a Nárnia me ensinou que o mundo estaria melhor se cada um se preocupasse apenas com a sua própria vida. O egoísmo é altivez do espírito. O grande problema é que muitas vezes confundimos a palavra ‘egoísmo’ com a palavra ‘prepotência’. O ego-ismo pode ser bom. A pré-potência nunca é.


O egoísmo é uma espécie de exclusivismo, onde você se preocupa com você, com seus interesses, com sua vida, com seus problemas etc., mas isso em momento nenhum diz respeito ao outro. Não há aqui um tipo de querer ou não querer o mal ao próximo. No egoísmo o próximo simplesmente não existe antes de nós; você coloca-o em segundo lugar porque você está em primeiro. A pessoa que está perto de você não é a pessoa mais próxima fisicamente, você é a pessoa mais próxima de você. O egoísmo não é em nenhum momento um fazer mal ao próximo. É apenas um querer bem a si mesmo. Nada mais justo do que vivermos nossa própria individualidade. Somos os seres mais próximos de nós mesmos e é conosco que vivemos 24 horas por dia, então, façamos de nós mesmos nossa melhor companhia. Ser egoísta é apenas o antônimo de altruísta. Altruísmo é você querer o bem ao próximo antes do seu próprio. É você escolher outro em vez de você. Isso é o absurdo de todos os absurdos porque fazendo isso perdemos toda a noção de nossa própria humanidade. Nem Jesus disse: “ame seu inimigo mais do que se ama”. Ele disse: “ame como a você mesmo”, ou seja, você tem que se amar porque somente amando a si mesmo pode ter referência para amar o próximo. Nós temos que achar o melhor em nós, temos que ter o melhor em nós e somente depois disso podemos provocar o melhor de nós nos outros. Amar o outro ser humano sem se amar é não amar ninguém. Você precisa gostar de si, querer seu próprio bem, desejar que seus projetos se concretizem até alcançar o sucesso, depois disso você deseja que toda essa sua benção se derrame sobre o outro. Amar o outro como a você mesmo. A calma dos gatinhos jamais te acusa, te oprime, ou quer seu mal, ele apenas não liga e nem julga. Não tenta se vitimizar. Ele quer o melhor para ele sem desejar o pior para você. Isso é egoísmo.

A prepotência é que não presta. Ela te engana porque faz você se sentir melhor e superior ao outro. Coisa que sabemos que não somos. Não temos absolutamente nenhum poder acima dos demais senão acima de nós mesmos. O sinônimo para esse tipo de atitude é opressão, despotismo, tirania, autoritarismo. Você não fica grande, você quer reduzir os outros. Você não se entende, não entende os outros nem nada, apenas manda, condena e, estando certo ou errado, você quer que as coisas sejam feitas de acordo com a sua vontade e suprime quem quer que seja para que isso aconteça. É incrível como isso é o oposto do que aquela gatinha era. Ela não forçava. Ela impunha o que queria e não obrigava. Caso você não entendesse ou atendesse sua vontade, ela simplesmente ignorava sua apatia e retirava-se do recinto. Colocava um ponto final na questão e deixava claro que isso não me tornava melhor e nem piorava a ela. Era um simples acontecimento que acabava nele mesmo. Ela se amava demais e considerava o dia importante demais para deixar um simples conjunto químico de carne, osso e espírito fraco estragar. Ela estava nela. Eu fora de mim.


Precisamos estar em nós para sermos um porto seguro para nós mesmos. Necessitamos estar fortes e para isso precisamos estar alinhados com nossas ambições, desejos e vontades. Certa feita, caminhando pela avenida Cupecê, em São Paulo, na companhia agradável do meu mestre, Gilberto Stabili e conversando com ele sobre essas questões de egoísmo e a personalidades dos bichanos, depois de ouvir com parcimônia minhas teses malucas; o mestre balançou a cabeça num tom reflexivo e como que afirmando tudo o que eu havia dito ele disse: “quem está fora do seu eu, está doente”. Uma máxima que resumiu tudo.

Eu vivia preocupado, coração apertado, tudo estava desmoronando. Minha vida estava num estado de mudança e eu parecia estar sujeito a todo tipo de injustiça. Acusações e condenações baseadas em simples desconfiança. Eu chegava na minha casa e chorava escondido. A gatinha indiferente ronronava, olhava e voltava a dormir. De alguma forma ela me dizia com seus gestos “não é o fim do mundo, humano preocupado. Deixa de ser bobo”. Era uma relação complicada, mas complicada apenas para mim. A gatinha simplesmente não ligava porque não precisava complicar relações para se sentir importante.


Eu ouvia algumas pessoas falando de gatos: “não estão preocupados”, “São traiçoeiros”, “não ligam para nada”, “é porque não tem conta para pagar”. Gatos não têm contas para pagar porque simplesmente não precisam disso. Não fabricam computadores porque não precisam de computadores. Não fabricam fogões porque não precisam cozinhar. Não tiram fotos porque vivem apenas o único momento que importa: o agora. Gatos não precisam ler, eles sabem o que precisam saber, vivem o que precisam viver e ponto. Nós avançamos na evolução, desenvolvemos, criamos estradas de ferro, máquinas poluidoras e processos de destruição do mundo. Eles não criaram nada, mas chegaram aqui conosco, apesar de não fazerem questão, estão bem e não pediram para serem cuidados. Nós que os achamos fofinhos e queremos eles por perto. Demorei para descobrir, mas sei o porquê de fazermos questão de tê-los por perto. Eles estão ali para nos lembrar que ainda falta muito para evoluirmos. Não importa a música que fazemos, os livros que escrevemos, os filmes que assistimos, o dinheiro que temos. Rico é quem tem o suficiente para viver sendo ele mesmo. Não admitem perturbação de seu espírito. Gatos continuam ganhando o mundo sem perder a alma. Nós perdemos a alma, perturbamos o espírito aos poucos antes de morrer sem nada, inclusive, sem ter ganhado o mundo.

Senti saudade da Nárnia durante certo tempo. Duvido que ela tenha sentido alguma coisa referente a isso. O agora para ela é o momento importante e qualquer momento importante para nós que não seja o agora deixa de sê-lo. Li o escritor americano, Mark Twain (1835-1910), que disse com razão: “De todas as criaturas de Deus somente uma não pode ser castigada. Essa é o gato. Se fosse possível cruzar o homem com o gato, melhoraria o homem, mas pioraria o gato”. Não sou o primeiro humano a aprender com um felino e refletir sobre ele, certo Twain?


Podes dizer-me, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?
Isso depende muito de para onde queres ir – respondeu o gato.
Não sei para onde ir – disse Alice.
Nesse caso, qualquer caminho serve – replicou o gato."
Lewis Carroll – Alice no País das Maravilhas.




Por Pierre Logan
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