A INJUSTA OMISSÃO
“Pedro nunca tinha ido à
Brasília. Sabia bastante sobre sua história e sua arquitetura, mas
naquela tarde modorrenta ele não pegou o avião para ver as
suntuosas estruturas da cidade-avião. Ele estava cansado de pensar
tanto e tirar conclusões certeiras acerca da cegueira que tinha
tomado conta do País. Ele estava com aquela sensação sugerida por
Dostoievski no livro “O Idiota”. Tentou durante toda sua vida
fazer as coisas do jeito certo, mas só via gente desonesta crescer.
Conheceu muita gente boa no
caminho, todavia, achava curioso como a bondade da maioria dos homens
da modernidade estava quase sempre recheada de covardia e omissão.
Durante a viagem ele criou uma máxima que repetiria o dia inteiro:
“A bondade e a covardia não cabem no mesmo saco”. Para ele, de
acordo com seu pensamento, era impossível ser bom (no sentido de ser
justo) e ser covarde ao mesmo tempo.
Pedro tinha cruzado a parte da
vida mais corrida de São Paulo. Estava exausto e não queria mais
sentir novamente aquela estranha sensação de andar em círculos
pela vida. Ele queria caminhar para frente em vez de dar ouvidos
aqueles que empurravam as pessoas para esquerda ou para direita.
Estava cansado de ouvir argumentos construídos sobre areia solta em
terreno propício à grandes ventanias. Queria solidificar o seu
espírito e, mais que isso, queria espalhar esse ar de liberdade para
outras pessoas respirarem. Tinha ouvido dizer que o preço pela
liberdade era a eterna vigilância e concordava com isso; contudo,
sabia que o preço dos grilhões era a eterna submissão. Queria um
país justo, livre e capaz de construir um futuro bom. Para ele a
verdade não era o meio-termo. Para ele a verdade estava em algum
outro lugar. Ele queria um ‘sim’ ou um ‘não’. Ele queria
mais que resultado, queria o caminho do resultado e, de preferência,
com todo o mapeamento do trajeto até a conclusão. Já fazia um
tempo que ele não estava em si mesmo. Estava doente.
Pedro viajou mais de uma hora
pelos céus do Brasil para falar com ela, a dama que há tempos havia
tirado féria do país e não mais havia voltado. Pedro queria olhar
nos seus olhos de pedra e, encarando-a, interpela-la sobre o motivo
de tanta acomodação. Ele estava ansioso por esse encontro. Não
teve pressa nenhuma pois sábia que ela não sairia do lugar. Foi
assim que numa quinta-feira, após as 17:45 da tarde, em frente ao
Supremo Tribunal Federal, Pedro parou com uma garrava de vinho e
encarou aquela passiva dama e fulminou com seu olhar cansado, a
estátua da justiça.
O jovem advogado de sucesso passou
alguns minutos olhando…. Rodou, rodou, rodou… circulou aquela
bendita estátua até ter a impressão de que ela embriagadamente
girava sozinha. Ergueu ironicamente a garrafa de vinho e derramou,
sem tirar os olhos da venda da deusa dizendo:
– Para você, ó dama tão
esperada por este povo sofrido e tão desprovido de representação.
Então é verdade o que dizem?! Você é o prenúncio do fracasso!
Tu, ó deusa da justiça! Eu viajei muitos quilômetros a fim de te
dizer estas palavras insólitas e viajaria dez vezes mais se tu
estivesses mais distante. Distante como esse teu olhar que não pode
se ver por trás da venda, mas adivinha-se que estás a delirar.
Perdida! Quem te criou merece um Oscar (sorriu). Eu sei quem te
criou, ó injusta e omissa dama. Alfredo Ceschiatti, um artista
plástico mineiro te criou em 1961. Sim, eu sei tudo sobre você e
seus 3, 3 metros de altura de puro granito. Maldita! Sim, confortável
dama, tu és maldita desde a tua criação. Não sabes tu que sendo
criada por um artista, sois completamente o oposto do que deveria
ser? Artistas não estão sujeitos a nem uma lei, pois são
anarquistas por natureza. Não aceitas governos, nem leis e nem
limites e tu sois uma mera criação de um artista que zombou de ti
enquanto te criava. Se achas tu que estou errado te enganas, ó dama
obesa. Me dizes então, ó suprassumo da retidão, por que diabos o
artista te colocou sentada? Pensas mesmo que foi coincidência ele te
colocar prostrada da maneira mais cômoda e inerte possível? Não
pensas ser irônico em demasia que a representação do que deveria
ver tudo e saber de tudo esteja vendada? Não me diz que isso
simboliza a imparcialidade, pois tu vês; e vê muito bem, quando
convém aos teus pares. Tu não me enganas. Prendem algum corrupto e
logo chamam isso de justiça. Isso é punição, garota inocente e
desleal, e não justiça. Para que algo seja justo é preciso que se
restitua o que foi furtado com a mesma prontidão que se executa a
pena. Mas tu és fraca e tua passividade é confundida com
imparcialidade pela maioria adestrada e deseducada.
Me diz, dama indefesa, se a espada
simboliza força por que mesmo ela repousa no teu colo diante de
tanta opressão? Te colocaram na frente do Supremo Tribunal Federal,
isso não te rebaixa a mera sentinela? Estás de costas para aqueles
que julgam o povo, mas tua espada aparentemente espera aqueles que
deveriam contar com a tua força. Recebes o povo de frente como se
quisesses combate-los. Que espécie de sentinela é aquela que não
protege os que estão atrás dela? Enfrenta-se os dá frente, certo?
O povo está na tua frente. O que farás? Te colocaram sentada,
vendada e impotente. Não sabendo como te posicionar de forma mais
passiva que aqui estás, escolheram a indecisão para te
representar.Sim, a indecisão é a última representação dos
medíocres. Não estou delirando, mas ainda que estivesse e morresse
por isso; eu seria um Quixote. Você somente uma acomodada qualquer.
Sabes por que te ofendo tanto? Tu achas que o artista colocou tua
palma esquerda para cima e tua palma direita para baixo por quê? Não
existe coincidência, minha cara. Ele sabia que tu não conseguirias
se definir; tão pouco escolher entre Platão e Aristóteles, mundo
Sensível ou Inteligível, bem e mal. Não podes ser justa sem a
balança. Onde está a balança que significa a justa medida?
Sem olhos, sentada, com a espada descansando, sem balança e, pior
ainda, sentinela daqueles que te corrompem diariamente. Como podeis
reagir? Tu não és o símbolo do que se manifesta, mas do que cala.
Tu não és o símbolo do que age e nem do que reage, senão do que
passivamente obedece. Não me pareces ter nenhuma vocação para
resignação, mas apenas para a mais calma obediência. Não, dama
ironizada, tu não serves para o papel. Sem a balança, ainda que
conseguisses levantar a espada, tu serias injusta. Deve ser por isso
que toda vez que alguém levanta a espada em teu nome, um pai de
família que te sustentou e preso por não conseguir sustentar seus
filhos. Quanto custa o sistema judiciário hoje no Brasil? E quando
ele funciona, custa quanto? És uma vergonha! Deixe que a verdadeira
justiça ocupe teu lugar, impostora! ”
Pedro jogou com força a garrava
de vinho com força contra a estátua. Ficou surpreso quando atingiu
em cheio a cabeça da imagem e teve a impressão de que a garrava
estava completamente cheia, pois o líquido se espalhou pelo rosto da
imagem e os cacos giraram no ar. Ele teve a impressão de ver uma
lágrima tinta escorrer por baixo da venda. Rosnou com ódio e cerrou
os punhos em direção ao prédio do Supremo enquanto se apoiava nos
pés da estátua
Pedro saiu inconformado daquele
local enquanto sussurrava baixinho: – Pobre refém desses covardes.
Eu te vingarei. Nascia ali uma líder.
Por Pierre Logan
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