VINHO, CORAÇÃO E COISAS QUEBRADAS.


Oi, meu amor! Estou escrevendo isso através de anotações mentais numa cama de um hospital que não sei qual é ainda. Meu notebook deve estar em algum lugar próximo, mas lamentavelmente não consigo pegar. Puseram soros em mim e me deixaram aqui deitado, repousando. Assim que possível eu te mandarei uma mensagem por algum aplicativo qualquer ou talvez escreva o texto no Catarse do meu site e te mande para que você leia antes de dizer qualquer coisa. Ainda não sei.

Não sei o que houve ainda, mas como da última vez, cerca de um ano e meio atrás, meu coração acelerou e quase que eu era quem ia…. Eu sei, minha Rainha, péssimo momento para fazer piada. Ouvi algumas vozes dos colegas do escritório dizendo “escapou por pouco hem, Dr. Logan”. Esse “escapou” me lembrou que sempre vi a vida como uma prisão e que não “escapei” de nada; fui capturado e jogado de volta na prisão existencial. Do que eu teria escapado? Da morte? Não tenho como escapar do que não me aprisiona. O filósofo estava certo. Não precisamos nos preocupar com a morte, pois quando estamos vivos ela não nos atinge e quando morremos já não estamos mais vivos para saber. A verdade é que eu devo ter morrido mesmo por alguns minutos. Três minutos para ser mais exato. Logo três, meu amor; o número que te deixa “pilhada”.

Não me pergunte o que vi do outro lado porque não lembro de nada. Sem luzes, nem vozes me chamando, nem visões de anjos ou demônios, ou pessoas, ou energias, ou cores ou qualquer coisa do gênero. Lembro apenas de sentir alguém fazendo massagem cardíaca e eu acordando depois. Pelo jeito parecia que tinha dormido um tempo. Estou aqui agora deitado e tendo quase certeza que a pessoa do meu lado está morta. Bem, meu amor, se estiver; ela que escapou; eu continuo preso a este mundo aqui. Achei até bom, afinal, eu tenho muita coisa para fazer do lado de cá antes de existir ou inexistir nas outras camadas universais dos mundos sobrepostos nos multiversos criados pelo mesmo Deus que nos inventou. Estou grato a Ele por isso. Preciso mudar o mundo ou morrer tentando. Seria muito vergonhoso morrer pela madrugada, num escritório de quinta, calculando verbas trabalhistas de um cara que já está em outro emprego. Morrer longe das pessoas que amo não seria agradável e, ao meu ver, uma morte modorrenta.



Todos do meu departamento ficaram surpresos com o ocorrido. Eu não. Meu coração corre demais para andar na velocidade normal. É natural que ele tenha pensado em sair na frente e o cérebro tenha ficado com inveja, afinal, o cérebro sempre se gabou de andar mais rápido. Devem ter discutido e o sistema nervoso ficou nervoso com o desentendimento, aí foi inevitável se descontrolar, os músculos começaram a tremer e vim parar aqui. Mas nem é para te contar essas coisas que te escrevo. É para te falar sobre as reflexões que tive durante o dia, a noite, o intervalo da minha morte, como falei não pensei em nada, e assim que a consciência me acordou voltei a pensar quase que ignorando completamente o ocorrido.Em primeiro lugar, pensei que seria ótimo te ter aqui ao meu lado e contrabandearmos uma garrava de vinho para o quarto do hospital. De preferência algum com nome de repouso, nem sei se existe, mas seria bom tipo “cura”, “Ressureição”, “Vivendo” ou “convalescente”. É incrível como o cheiro do vinho me lembra de você agora. Infelizmente não tenho vinho aqui e nem tenho você, mas assim que tiver condições, pego meu computador e começo a escrever tudo isso que estou pensando. Enfim, meu amor, pensei muito em muitas coisas sobre o mundo, sobre mim, sobre você, sobre nossas conversas ou tentativas de diálogos que algumas vezes acabam em discussão ou ironias que machucam e cortam mais do que balas. Com o vinho sempre nos entendíamos. Ficávamos em silencio, nos beijávamos, deitávamos e, não importava se o silêncio era predominante ou se a conversa se alongaria, você deitava em cima de mim, e tudo estava resolvido. Seu cheiro se misturava com o do vinho, seu hálito delicioso e dava um novo sabor as madrugadas. Nada seria novamente como antes. Todo dia nascíamos e vivíamos num espaço etéreo, mas paradoxalmente palpável e maravilhosamente humano. Era como se sentíssemos em cada um nossa pequena parcela de Deus em nós. O vinho seria um remédio para a memória se eu esquecesse algum detalhe que irremediavelmente não viria sem ele. Dizem que quanto mais velho o vinho, melhor ele fica…


Primeiro lembrei que estou com meus trinta anos, Balzac deveria ter escrito algo sobre os homens de trinta, mas preferiu falar sobre as mulheres. Eu até o entendo, minha rainha, afinal, homens são desinteressantes na maioria dos casos e o que nos resta é falar sobre vocês. Eu mesmo estava pensando que mesmo com esta idade que tenho me sinto com, pelo menos, cem anos. E cerca de 85 anos atrás, quando eu ainda era jovem, preferia mulheres mais jovens. Passei um ano gostando de garotas mais jovens ou da minha idade, mas logo fiquei entediado. Perdi quase todo interesse por mulheres e fiquei completamente apaixonado por outra garota a “Filosofia”. Passava horas ouvindo ela falar e sorria sozinho no quarto com as coisas que aprendia com aquela maravilhosa dama. Depois conheci a Literatura e cortei relações com a Filosofia por um tempo. Depois de um certo tempo senti falta de uma mulher palpável, real, fisicamente calorosa. Eu queria uma mulher que me aquecesse o corpo, pois as minhas duas amantes anteriores, a filosofia e a literatura, aqueciam meu espírito. Não consegui mais gostar de garotas jovens, nem mocinhas da minha cidade. Não sabia, mas comecei a me interessar por mulheres bem mais velhas que eu. Hoje sei que tem a ver com a mesma percepção do Balzac. Mas percebo as mulheres mais velhas como recantos amorosos e inteligíveis; anjos na terra, humanamente admiráveis. Não importa o quanto eu estude, aprenda, pense, me melhore etc. Eu preciso estudar, aprender, me melhorar, conhecer, pensar para me sentir a altura do que uma mulher é apenas pelo fato de ser mulher. Enfim, meu amor, te amo e você sabe que todo sacrifício válido só o é porque visa algo maior no fim e sabe o porquê te amo tanto assim? Porque, apesar de você não ser tão velha, você sempre me melhora e ama as marcas de guerras, não as marcas de roupas. O que me fez pensar que o problema não estava na idade das garotas, estava na minha.Sabe o motivo de estar te dizendo todas essas coisas? Lembrei que Platão tinha me avisado que “quando envelhecemos nos livramos de muitos tiranos”. Era uma das coisas que eu não concordava com ele, hoje percebo que eu estava errado. Hoje percebo que qualquer idiota consegue ser um jovem, mas envelhecer é coisa séria e carece de talento para o fazer bem. Estou começando a gostar dos trinta, pois livro-me aos poucos de meus opressores hormonais descerebrados e consigo utilizar minhas duas cabeças sem uma atrapalhar a outra.


Aposto que você riu no final do parágrafo anterior. Sei que você adora quando eu me utilizo de metáforas sexuais para expressar o que quero. Você sempre elogiou minha ironia brincalhona e meu sarcasmo com os poderosos. Você se orgulha notadamente quando eu uso meu conhecimento para desconstruir a pose de “importante” que os calhordas se utilizam para vangloriarem-se pela amostra de tudo o que eles não são. Parece que foi ontem que numa discussão com um advogado “de sucesso”:– Você não trabalha por amor, trabalha para aparecer, Pierre.

– Bem, Dr., eu consigo aparecer com o meu trabalho, mas você só consegue aparecer quando vem com essa gravata ridícula.

Eu juro que podia te ver aplaudindo e dando aqueles pulinhos antes de se jogar em meus braços para me beijar. Você adora as jogadas de palavras, a destreza com o vernáculo e eu não tenho interesse em impressionar mais ninguém neste mundo. Seu amor me basta. Te fazer feliz me basta. Te amar me basta. Te ter comigo me basta. E dentre outras coisas importantes, o mais importante é viver sempre mais um dia para lembrar ao dia que eu amo você.

Uma vez uma mulher leu minha mão na praça da Sé. Não se preocupe, não passo nem perto de acreditar nessas bobagens. Eu acredito que o caminho é construído na medida em que caminhamos. Não existe vida pré-preenchida, não acredito que exista caminho traçado por outro para você, pois isso implicaria no fato de que sua vida já foi explorada, o que é inconcebível para um Deus Criador. Sou insignificante demais para entender os critérios de Deus, mas reconheço bobagens humanas quando escuto. O fato é que “vidente” (que me perguntou o nome) o que fez com que perdesse imediatamente a credibilidade, já que não adivinhou meu nome, mas achava que conseguiria saber do meu futuro, me disse que eu não estaria completo nesta vida. Disse que eu estava esperando uma vida nova para me tornar quem eu era. Partindo do pressuposto que morri durante três minutos nesta madrugada, ela tem fortes chances de estar certa.

São Paulo, 02 de setembro de 2017
3 (três) horas da manhã
Te amo


Por Pierre Logan
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