MORTE POR AFOGAMENTO


A casa estava em completo silêncio. O relógio estava demasiadamente pesado para a parede cansada. Os corredores vazios de quase tudo. Os pensamentos estavam espalhados por todos os cômodos. Pedaços de papel de todas as cores e tamanhos jogados em todos os cantos daquela residência humanamente inabitável. O cansaço parecia reinar naquele ambiente insalubre e denso como chumbo. Anotações rápidas, grandes textos desconexos, pilhas de papéis bem organizadas, pequenos blocos de papéis reciclados se misturavam e davam uma sensação de que tudo estava organizado de maneira caótica. Sim, era um paradoxo terrível. Ninguém, minimamente sóbrio em relação à normalidade do mundo moderno, sobreviveria naquele local.

Quase tudo naquela casa estava rabiscado. Era como se o pensador tivesse gastado todas as folhas e, mergulhado naqueles pensamentos, continuava anotando em todos os espaços possíveis da casa. A geladeira estava riscada. As paredes repletas de anotações. Os móveis com cálculos rabiscados ligeiramente e frases pelo forro que também parecia cansado, ameaçando despencar sobre a cabeça de quem quer que tivesse coragem de permanecer ali muito tempo. Quantos anos alguém levaria para fazer tamanha confusão?

A janela tinha uma proteção de vidro e lia-se claramente num arranhão: “não morreram, mas não vivem mais”. Aparentemente aquela frase, em letras garrafais, foi feita sem muita destreza e sem a ferramenta adequada. Devem ter escrito aquilo em um momento de muita dor, pois os traços pareciam se contorcerem em movimentos desesperados, mas pareciam estar ali para que alguém os lesse. No batente de um dos quartos estava escrito “Conhece-te a ti mesmo”. Havia pequenas frases espalhadas por todos os rodapés de todas as paredes da casa. “Conversem comigo”, “importem-se com os outros”, “amem mais as pessoas e menos as coisas”, “Vocês estão presos as telas”, “eu não quero ser o mesmo”, “descartável”, “Seja alguém sem ser igual aos outros”, “onde encontro pessoas no mundo?”, “estou bem, estou bem, estamos bem, todos estão confortavelmente felizes”, “ o medo venceu”…. Pareciam não ter fim.


Nas pilhas de papel de resmas de 500 folhas A4 estavam títulos em pequenas etiquetas na parte superior direita do tipo: “Da vaidade”, “Do amor”, “A gata Nárnia”, “uma carta de amor”, “A dama e o guerreiro”, “Injusta omissão”, “O peso do mundo”, “O poço de Logan”, “A última carta de amor”, “Crônicas de um mundo moderno”, “A casa das três mulheres”, “Vinho, coração e coisas quebradas”, “O viaduto”, “Memórias presentes”, “O mau gênio”, “Teoria da Fonte”, “Maldade”, “Reflexões sobre o futuro”, “Sobre pessoas e âncoras”, “Renascendo”, “Pensamentos soltos”, “O crente ostentação”, “O menino e o sol”, “Sociedade enlatada”, “Deus está morto?”, “Livre-pensador”, “Deus improvisa”, “Independente”, “Logan’s S/A”, “um desconhecido”, “Caminho possível”, “Enquanto o mundo dorme”, “O grande teorema”, “O vento e a rocha”, “O último segredo”, “Ato final”, “pensamentos sobre a morte” e uma infinidade de outros textos. As pilhas de papéis eram incontáveis e ocupavam quase que a aquele cômodo em sua totalidade. Era preciso ter mais de uma vida para escrever, ler ou analisar aquilo tudo.


Numa prateleira suspensa tinham alguns discos, CDs e DVDs de musicais. Observei um completamente estragado por pisadas e marcas de quedas. Alguém estava com bastante raiva daquele CD. Tirei o encarte de dentro da caixa completamente rachada e reparei um rapaz bem vestido tirando uma self com um celular de marca “vanitas” (vaidade em latim), atrás, do superior direito daquele jovem, tinha uma criança gritando desesperada por algum socorro. Fiquei assombrado com a indiferença de quem se fotografava no momento. Quase que sem querer, observei que o cenário atrás dele está destruído por um tipo de desastre natural enlameado. Na parte superior esquerdo do mesmo jovem, um pequeno menino que não podia ter mais de quatro anos e estava morto. Aquilo fez com que eu embrulhasse aquele encarte e jogasse para longe de mim. Entendi a raiva de quem quebrou aquela capa de puro mau gosto.

Aquele ambiente começa a pesar sobre meus ombros e parece roubar o oxigênio. Fiquei tonto e percebi que deveria sair daquele ambiente perigoso e inabitável. Passo por placas de “vende-se”, “Vendeu-se”, “Vendem-se”, “Vendidos”, “Comprados” e me dirijo o mais rápido que posso para a porta de saída. Percebo que no interruptor estava escrito “Que haja luz” e em uma lâmpada pendurada por um fio no corredor, estava escrito “Que haja sombras”. Pensei imediatamente que aquilo poderia estar me dizendo que toda luz provoca sombra e que o universo é criado por opostos, já que sem os opostos não pode haver equilíbrio.

Tropeço em algo e sinto estar mergulhado em sangue. Um corpo. Um homem morto no chão da sala. Deus! Me arrasto até a porta e me penduro no trinco numa tentativa inútil de abrir a porta. Olho para os lados, como se alguém pudesse me oferecer algum tipo de socorro. Uma garrafa de vinho estava descansando em um tipo de mesa improvisada com caixotes e duas inscrições sob a garra: “Vinho – 02 centavos”, “Rolha – um milhão de reais”. Numa parte do tapete estava escrito: “sempre grite fogo. Jamais peça socorro. Quando grita socorro, todo mundo se esconde; quando grita fogo, todos correm para ajudar. Porque o humano é o material mais nocivo para ele mesmo”. Li isso meio que de soslaio.


O ar parece ter acabado de vez. Balanço o trinco, chacoalho a madeira, mas nada parece abalar a estrutura daquela maldita porta. Caio sem ar, olhos esbugalhados e movimentos epiléticos estremecem tudo o que não consigo controlar em mim. Caio no chão da sala e observo que em meu pé tem um tipo de etiqueta dessas que os peritos colocam nos corpos do necrotério. Leio: “morte por afogamento”. O que diabos aquilo queria dizer? Eu jamais me afoguei em nada. Sei nadar como um peixe. Sou um sobrevivente. Recupero um pouco do ar que tinha perdido e abandono a porta para tentar a janela. Nada. Tudo lacrado e inviolável como um cofre. Socorro! Socorro! Nada parece me ouvir gritar. Socorro! “A realidade é uma ilusão dos sentidos”, leio sem querer. “O mundo físico é uma limitação pobre da verdade”, leio também involuntariamente. Deus! Não consigo respirar…caio inerte, mas ainda consciente diante de um espelho cansado e noto estar completamente despido de roupas, egoísmo, desejos, vaidades, ambição; não noto isso apenas por minha aparência pobre, mas pelas tatuagens que inacreditavelmente aparecem pelo meu corpo: “Covardia”, “cobiça”, “orgulho”, “preconceito”, “estupidez”, “pobreza de espírito”… aos poucos sinto o mundo escurecer e no fim do túnel uma luz que parece escrever no vazio: “que haja sombras, onde houver morte por afogamento”. Foi assim que afoguei tudo de mim que havia aqui, quando só eu existia e não existia Deus em mim. Agora, Deus existe e eu não existo mais.


Por Pierre Logan
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