MEMÓRIAS PRESENTES




O cheiro da casa estava gravado na minha alma. O portão que quase sempre estava fechado, a garagem esperando pelos carros, as escadas que na minha infância subiam como uma grande ponte diagonal estendendo-se em direção ao céu. O paraíso era a antessala com piso de madeira.

Quando criança eu corria por esta casa sem respeitar as funções das portas ou janelas. Pendurava-me nos móveis, escalava os batentes, salvava princesas em perigo. Era um pequeno menino cujo espírito parecia não caber dentro do próprio corpo; talvez por isso, vez e outra, eu precisava transbordar. Fechava os olhos, sentia a insignificância da minha existência naquele imenso processo de criação e destruição de infinitos universos. Não lia livros ainda, mas lia o céu, o vento, as telhas das casas vizinhas, os aviões que passavam sem pressa por um imenso céu que os diminuía. O mundo parecia não precisar de mim para nada, mas eu precisava desvendar o mundo.

Quando somos crianças temos a vantagem de termos pouco passado. Nossa memória quase sempre está no presente. Nessa faze, ainda não temos uma adolescência problemática, confusa e egoísta para lembrar. É na infância que percebemos quão grande o mundo é e aos poucos vamos descobrindo que não sabemos praticamente nada. Crescemos e na adolescência achamos que já sabemos tudo, que somos maiores e mais fortes que tudo, que podemos tudo, mas essa inocência talvez seja apenas um reflexo da criança que talvez nunca deixe de brincar e correr dentro de nós. A imagem da escada volta.

Continuo andando pela casa com a voz calada, o silêncio é ferido apenas pelos sons dos meus passos. Minha alma canta. Meus pensamentos dão voltas, dançam, derrubam móveis, escalam paredes, descobrem esconderijos e tesouros. Atravesso a sala e percebo como certas coisas são novas para mim. Chego a varanda e deixo meus olhos passearem pela rua. Observo as casas vizinhas, sinto o vento girando as folhas das árvores que dançam ao lado dos postes sem vida. O cinza do asfalto é um poema triste.

Estou cansado demais para continuar. – Pensei sem tirar os olhos do horizonte que se escondia por trás dos prédios distantes. Foi mais ou menos naquele momento que decidi fechar os olhos, pois no fundo sabia que só assim conseguiria me enxergar. O cheiro daquela casa me trazia memórias escondidas nos recantos mais escondidos do meu cérebro e causava no meu coração uma sensação boa de felicidade.

Colocar o passado em dia é um paradoxo. Talvez não tenha sido nada disso, todavia, era isso o que eu sentia. Colocar o passado em dia… A vida parecia estar ficando em silêncio. As coisas estavam ficando calmas. O mundo parecia não girar na mesma velocidade de sempre. De repente o vento não girava folhas na rua. Que vento? Que rua? Não havia mais árvores dançando ao lado de postes sem vida. Que árvores? Que postes? Que vida? Eu já não sabia se estava em silêncio ou se eu era o próprio silêncio. Era como se estivesse preso dentro de mim.

Não é isso o que fazemos? Prendemos histórias, memórias, situações, imagens, mensagens, pessoas, passados, pavores e outros tipos de sentimentos dentro de nós. Somos depósitos de sentimentos. Somos depósitos de experiências vividas e lições aprendidas, ou não aprendidas. Nos destruímos por dentro criando situações internas que nos corroem e refletem no nosso estado mental a confusão que somos. Quando não acalmamos nosso coração, esquecemos que o mundo é quase o mesmo para todo mundo. Nos desesperamos com coisas pequenas e nos perdemos em nossa própria confusão. Nos tornamos fracos, ressentidos, covardes; fracos perdidos, ressentidos perdidos, covardes perdidos. Perdidos. Como pude guardar aquela imensa casa dentro de mim? Como pude guardar a garagem, a varanda, a antessala, a sala, a cozinha, os quartos, os armários e.…, as escadas… as escadas… Nietzsche estava de pé no topo do paraíso de piso de madeira que era representada pela antessala. Me olhando com semblante seríssimo ele me dizia que cada degrau representava uma experiência e que cada vez que eu pulasse um degrau eu era condenado por uma experiência que não vivi. O próximo degrau pode exigir a experiência do anterior e um degrau conversa com o outro, assim como as experiências se conectam. “O degrau que você pulou, pequeno Logan, nunca irá te perdoar”.

Abri meus olhos e o mundo voltou a cantar. Os olhos correram pelas ruas e notaram a presença de vento, folhas, árvores e postes. Aos poucos senti que estava acordado novamente. Vida. Levanto dos meus pensamentos e passo pela sala, atravesso a porta que dá para escada, chego na cozinha onde Suely está em pé perto da porta. Vida. Há algo em seus olhos…. Há uma expressão sutil e preocupada de quem escutou todas as palavras de Nietzsche no topo da escada. Dou um sorriso e recebo outro sorriso em troca. Passa uma criança correndo pela casa em direção ao batente da porta onde começa uma escalada. O cheiro da casa estava gravado na minha alma. Só eu via aquela criança. Eu era a criança.

– Fiquem à vontade! Fiquem como se estivessem em casa. – Suely falou com veemência. Foi só aí que percebi que tinha acabado de chegar. Que tudo ainda estava se iniciando. Não tinha ido até a varanda. Que a rua, o vento, a folha, as arvores que dançavam ao lado de postes sem vida estavam na verdade vivendo dentro de mim. Meu espírito teria saído do meu corpo e passeado pela casa? “Meu Deus! ” – Pensei apavorado. “O presente! O presente era um degrau pulado e o degrau pulado nunca perdoa. Não é possível colocar o passado em dia. Um paradoxo! ”

Talvez a criança tenha crescido e, não cabendo dentro de mim, virei um adulto distraído que transborda. Agora eu leio livros, o céu, o vento, as telhas das casas vizinhas, os aviões que passam sem pressa por um imenso céu que os diminui. O mundo continua sem precisar de mim para nada, mas eu preciso desvendá-lo, pois ainda tenho noção da minha existência insignificante neste imenso processo de criação e destruição de infinitos universos. Quando somos adultos temos a vantagem de ter uma criança crescida correndo dentro de nós.



Por Pierre Logan

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Comentários

  1. Aqui vc viajou... Viajou para dentro de seu ser e recordou parte de seus momentos de menino e viu que o que realmente importa é o amor que oferecemos. Sabemos que plantamos mas o que não podemos imaginar é que, com o solo fértil, a produção será exatamente essa... Coração de menino "bunitu"... gota serena... transformados em Homem valente, responsável e dono de si. A emoção toma conta do meu coração e Gratidão e o que sinto.Sou
    eternamente grata! Parabéns!
    💖😙

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