O VIADUTO
Pedro continuava buscando
respostas. Nem sabia bem quais eram as perguntas. Ele só procurava
algo que fizesse com que ele sentisse que alguma coisa na sua vida
era real. Tudo o que a sociedade considera suficiente para ser um
homem bem-sucedido, Pedro já tinha conquistado. Estava no auge de
sua carreira como advogado e professor, mas aquele vazio que sentia
por dentro não se preenchia por nenhuma conquista que viesse de
fora.
Certo dia ele deixou seu suntuoso
apartamento num bairro de luxo de São Paulo para andar a pé pelas
ruas. Estava cansado daquela felicidade falseada pelos sorrisos
escancarados dos amigos, familiares e pessoas que encontrava com
frequência. Decidiu repentinamente que não pegaria um taxi naquela
noite. Acenou para o primeiro ônibus que passou e seguiu em direção
a qualquer lugar. “Quando não temos para onde ir, qualquer lugar
serve” – Pensou. Na verdade, ele sabia que o lugar de chegada era
o menos importante. Sabia que a riqueza do caminhar e as experiências
que as situações nos trazem são o verdadeiro sentido da partida e
que se não aprendermos a encontrar a felicidade durante a jornada,
nada teremos a não ser lamentações e uma chegada infeliz. Ele
sabia. Mas conhecimento e sabedoria são coisas diferentes. O que ele
esperava enquanto seguia no coletivo era encontrar pessoas reais,
situações excitantes, uma história verdadeiramente emocionante
para contar.
Olhando pela janela do coletivo,
Pedro via as coisas aparentemente recuando; olhou para o relógio. Já
era meia-noite. Começou a pensar consigo mesmo se o relógio não
seria um símbolo de que o tempo estava olhando por um tipo de janela
cósmica de um coletivo infinito e vendo toda humanidade recuar, como
os postes, árvores, pessoas, postes, estátuas, banners, árvores,
pontes, fachadas de lojas, postes, árvores, postes, pessoas, pontes,
postes, árvores, concreto que ele via pela janela artificial daquele
ônibus. Começou a imaginar se nossas vidas não seriam uma história
de ficção criada por um Deus indiferente para com nossos desejos.
“Os segundos seriam as letras. – Pensou acerca de seu último
devaneio e continuou – Os minutos serias as palavras. As horas
seriam frases e orações, a depender de sua construção. Talvez os
dias fossem parágrafos, meses páginas e anos capítulos. O pior é
que damos nomes aos títulos: Renascença, Barroco, Romantismo,
Pré-socrático, Medieval, Modernidade, Realismo etc. Somos
personagens”.
Foi arrancado de sua pobre
reflexão por um outro personagem que tocando levemente em seu ombro,
avisou que aquele era o ponto final do coletivo. Ele desceu e pensou
que caminharia, e caminharia e caminharia pelas ruas. Foi o que fez.
Caminhou, caminhou e caminhou; passou por estudantes embriagados,
mendigos, ruas desertas, viciados, prostitutas que também
disfarçavam o cansaço e talvez cansado de não encontrar nenhuma
rua tão vazia quanto ele, sentou-se na calçada pisoteada por
milhares de pessoas que passavam durante o dia pelo Viaduto do Chá.
Pensou em deitar-se para
contemplar a imensidão do céu quando reparou que um homem que
aparentava ter mais de setenta anos subia numa das laterais. Não
pule – Gritou Pedro não muito preocupado – Garanto que não tem
nada lá embaixo que você não possa ver se optar pelas escadas. O
tal suposto suicida disse que não pretendia se matar. Queria apenas
sentir o vento e contemplar sua própria criação. Aliás –
Interpelou o velho – Você não teria um trocado ou algo para comer
aí? Pedro disse que andava apenas com um documento e o cartão de
crédito, mas era mentira, ele sempre tinha uns trocados para alguma
emergência.
– Você disse que estava
contemplando sua própria criação? – Perguntou Pedro com um ar
superior.
– Sim! – O velho respondeu
enquanto descia da lateral para se aproximar de Pedro na calçada
cansada. Sentou-se e começou a tagarelar.
– Na verdade eu não estava
contemplando minha criação, mas sim a vista que minha criação
proporciona para quem a olha. É uma maravilha. Depois que fizeram
esses prédios e encheram tudo com luzes, ficou divinamente humano.
– Não estou entendendo. Você
está tentando me convencer que criou este viaduto? – Pedro
perguntou com ar de zombaria.
– Desculpe-me. Não me
apresentei. Sou Jules Martins, idealizei este magnífico boulevard.
– Prazer, Jules, sou o Papa
Francisco. – Ironizou Pedro enquanto sorria e começou a se
levantar.
– Prazer. É realmente uma
grande honra tê-lo aqui. Fico contente que tenha abandonado uma
noite de sono para sentir essa parte maravilhosa de Deus. Porque a
criação da criatura não deixa de ser criação-neta do
Criador-pai. Já que somos todos filhos de Deus, não é, Santidade?
Pedro começou a pensar se aquele
indivíduo não seria um louco que saíra do hospício e estava
perdido pelo centro de São Paulo. Teve uma ideia genial. Sacou o
celular e decidiu desmascarar a loucura daquele louco. Não era
questão de cura ou de desmascarar a mentira para descobrir o rosto
da verdade. Ele só queria ver no que aquilo daria depois que ele
mostrasse para aquele maluco que ele era mesmo um maluco. Pedro
estava fora de si. Pesquisou na internet sobre o Viaduto do Chá e
ficou surpreso quando leu que o idealizador daquele projeto se
chamava mesmo Jules Martins e que havia nascido na França em 1832 e
morrido no Brasil em 1906.
– Me diga, meu amigo Jules
Martins – Iniciou Pedro sem desgrudar os olhos do aparelho móvel –
Onde estudou mesmo?
– Estudei na Escola de Belas
Artes de Marselha. Por quê?
Pedro conferiu com a informação
fornecida pela rede. A informação batia. Jules Martins Havia mesmo
estudado naquela escola em 1844. Pedro fica cada vez mais curioso.
Afinal, era um louco com memória excelente para fatos históricos.
Continuou a inquisição:
– Nada demais. Apenas
curiosidade. Gosto de saber mais sobre os filhos de Deus. Me diga,
Jules, meu amigo, quando chegou aqui nesta magnífica cidade?
– Ah, Santidade, cheguei em
1868, pois fui convidado pelo meu irmão, o Pierre, sócio de um
livreiro. Passei um tempo em Sorocaba e depois vim morar aqui na
Capital para expor umas pinturas. Acredite se quiser, mas eu montei
mais ou menos dois anos depois que cheguei uma das primeiras casas
litográficas de São Paulo. Quatro ou cinco anos depois Dom Pedro II
concedeu a minha oficina o título de “imperial litografia”. Foi
muito gratificante e fiquei bastante entusiasmado com isso.
Pedro ouvia em silêncio enquanto
pesquisava aquelas informações nos sites de buscas e o pior é que
tudo estava batendo com o que o tal maluco dizia. Ficou admirado.
Decidiu continuar fazendo perguntas para saber mais sobre aquele
indivíduo.
– Fantástico, Jules! Deve ter
produzido bastante…
– Sim! Fiquei animadíssimo. Em
1877 produzi o primeiro mapa da Província de São Paulo. Depois, sem
perder tempo, forneci o primeiro projeto para construção deste
viaduto sobre o Vale do Anhangabaú. Sabe, entreguei minha oficina a
meu filho e passei a me dedicar somente a projetos urbanísticos.
Ganhei a concessão para construir este Viaduto. Os jornais começaram
a discutir e fizeram um barulho danado. Muito barulho. A verdade é
que não consegui termina-lo com recursos próprios. Acabei deixando
a execução para outra empresa.
Pedro começou a ficar assustado.
Não porque achava que aquele doido poderia ser Jules, mas por achar
que era impressionante que alguém tivesse trocado sua própria
história pela história de outra pessoa por mais importante que essa
pessoa tenha sido.
– Tivemos que mudar umas coisas.
– Continuou o homem que acreditava ser Jules Martins – Meu
projeto era feito para que a construção fosse feita toda com
armaduras metálicas. De fato o foi, mas devido ao uso a estrutura
começou a ceder. Depois que tudo foi substituído por vigas de
concreto chegamos até essa belezura. Quando Vossa Santidade puder,
posso mostrar meus desenhos originais e outros que tenho.
Pedro ouviu com atenção e não
conseguia parar de sorrir daquela situação. Sem pensar direito
falou para o homem entusiasmado que Jules Martins havia morrido em
1906. O homem ficou calado. Sério. E depois de alguns minutos em
silêncio, falou quase que sussurrando:
– Você não entende nada sobre
a inexistência, não é? Busca sentido e quando começa a encontrar
o fio da meada limita-se ao que pode ver ou tocar. Não é juiz, mas
condena. Não é psiquiatra, mas distribui diagnósticos das
“sanidades” incompreensíveis por sua “normalidade” maluca.
Você sabe do que estou falando, Pedro. Nunca chegará onde precisa
se ficar preso as coisas existentes sem saber que é em toda
existência que a dentro de você que dá ou não dá sentido a elas.
Quem de nós dois está perdido mesmo? Quem de nós dois morreu? Quem
de nós dois construiu ou desconstruiu algum motivo de orgulho ou de
vergonha que nos atormenta? Você com sua ironia achando que
compreende o mundo que não compreende. Estou farto de você, Pedro.
Você está farto de você. Sabe do que estou falando. Chora debaixo
de chuveiros que não te trazem nada. Caminha em círculos pela vida.
Acha que sou um maluco que trocou a história própria por outra
história? Faz perguntas a si mesmo sobre mim como se se conhecesse
muito bem. Ora, não seja ridículo, Pedro. Você vive 24 horas
consigo e não tem nenhuma ideia do que seja. E preferia uma outra
versão que você poderia ter de si mesmo, mas você evitou a dor e
evitou caminhos perigosos. Você é um fraco bem-sucedido
profissionalmente como muitos que há. Nem sei o porquê de ter
perdido tempo contigo. Nem você faz isso por você mesmo. Eu sou
Jules Martin, e você, Pedro, o que acha que é? Quem você acha que
é? Fique com Deus e proteja-se de si mesmo.
O tal homem maluco disse isso e
saiu andando. Pedro não se mexeu nem um milímetro. Em poucos
segundos o velho sumiu por trás do Teatro Municipal e o mundo voltou
a ficar em silêncio. Pedro não conseguia entender suas últimas
palavras apesar de saber que elas ecoariam na sua cabeça por um
tempo. Depois outra coisa ficou martelando. E foi justamente o fato
de ter ouvido o maluco chama-lo de Pedro, pois não conseguia se
lembrar de em algum momento ter dito seu nome a ele.
Por Pierre Logan
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