A TEORIA DA FONTE


– Vamos lá – Disse o terapeuta –  abra seu coração.
Não há o que abrir. Tudo o que tinha dentro de mim eu já coloquei para fora. Cada palavra dita, cada situação vivida, mas não importa o que aconteça fatidicamente porque se não tivermos as palavras, é como se as coisas não existissem para o ser humano.

O terapeuta cruza as pernas e faz cara de curioso. – Continue, Pedro, estamos evoluindo.

– Evoluindo…. Não, doutor, não estamos evoluindo. Estamos indo até onde o senhor quer chegar.


Mas vamos lá. Estamos aqui para isso, afinal. Eu me apaixonei. Amei demais uma mulher. Sonhei em estar do lado dela e julguei que seria o último lugar onde queria estar até o fim dos meus dias. Entre todos os braços que poderia escolher, eu escolhi os dela. Era tudo o que eu queria depois de ter passado por quase todo tipo de experiência de vida. Nós éramos perfeitos um para o outro.– O que aconteceu para esse sentimento acabar?

– Não, não. Não acabou. Eu ainda a amo, mas tenho dúvidas. Sou muito apegado as palavras e… não sei eu… – o doutor interrompeu – Pedro, sejamos francos, você ama as palavras, mas diz que ainda ama essa mulher, todavia, até agora, só usou palavras pretéritas para descrever o que sentia. Você diz “amei”, “sonhei”, “julguei”, “era tudo o que eu queria” etc., veja, Pedro, você tem que admitir algo para você mesmo. Do que está falando, de um amor que não existe mais ou de um amor que permanece contigo.

– Desculpe, doutor, para os apaixonados o tempo presente e o pretérito se encontram praticamente no mesmo lugar. É a tal história de que “o que se faz por amor está sempre além do bem e do mal”. Então, está além do tempo também.

– Você cita muito Nietzsche. Se identifica com ele?

– Não. Nietzsche não teve sorte no amor. Eu tive e desperdicei cada uma de minhas chances. Hoje, porém, não tenho certeza se foi culpa minha. Como eu estava falando, amei demais…, quero dizer; amo demais e estou sofrendo por isso. A mulher por quem me apaixonei esconde coisas de mim. Coisas que deveria contar.

– Se ela não conta, Pedro, como você sabe?

– Ora, doutor, eu sei de muitas coisas que o senhor não entenderia. Não sou um advogadozinho qualquer. Sou diferente. Tenho a impressão que sou as outras pessoas. Entro dentro da cabeça delas e acabo descobrindo seus pensamentos.

– Você quer me dizer que consegue ler pensamentos?

– Não. Não é uma leitura. Nós seres humanos temos uma coisa em comum, doutor, se pararmos para pensar todos nós, no mundo inteiro, temos os mesmos vícios e se deixássemos cada um por si e sem contato, é provável que chegássemos todos ao mesmo lugar. Eu descobri de alguma forma onde é esse lugar. É um espaço vazio que conecta todos nós a fonte. Chamamos essa fonte de vida, energia vital ou coisas desse tipo.

– Você fala do que – o doutor já olhava desconfiado de que Pedro estivesse com problemas – talvez tenha acesso a outra dimensão?


– Doutor, sinceramente, o senhor já parou para pensar o porquê precisamos dormir? Será que só o fato de deitar e pegar no sono já seja aceitável sem mais questionamentos que recarreguemos nossa bateria? Será que é tão fácil assim? Não seria razoável imaginar que tudo o que carrega tem uma fonte de energia que vem de algum lugar? O que carrega tem que ter energia que vem de um outro lugar. Ora, é para esse lugar em comum que todos vamos quando dormimos. Recarregamos nossa alma. Eu consigo acessar esse lugar quando estou acordado e sinto a alma e os pensamentos das pessoas. Se nada se cria e nada se perde de onde vem e para onde vão nossos pensamentos quando pensamos? Enfim, não vem ao caso. Estávamos falando da mulher que não sei se amo mais.

– Tem razão, Pedro, depois voltaremos a este ponto. Continue falando do seu amor.

– Ela fez uma coisa que deveria me contar. Mas escolheu no fundo da alma que não me contaria. Isso doeu porque a confiança está escorrendo para o ralo junto com outros sentimentos e a esperança que tinha de ser feliz.

– Tudo bem. Você acha que ela traiu você ou algo assim?

– Não. Não seria uma traição porque a gente… esquece, foi sim. Toda omissão de um fato importante é uma traição e… estou confuso. Preciso descansar. Preciso dormir…

– Você quer dizer voltar a fonte…

– Isso mesmo.

– Mas você disse que consegue chegar a fonte enquanto está acordado. Se consegue tal feito porque precisa dormir para descansar?

– Não sei. Não sou como a maioria que precisa ir todo dia, mas como falei é energia vital. Quem não dorme morre. A bateria acaba. O que isso tem mesmo a ver com o que eu estava falando? Ah! Sim. Estou cansado.

– Não vou te dar remédios para dormir, Pedro, você precisa de sono natural e saudável.

– Tudo bem, mas estou avisando que não aguento mais…

– Você não está inventando essas estórias para que eu te receite um remédio para dormir, certo?

– Certo. Eu amava demais aquela mulher.

– No passado de novo, Pedro.

– Tem razão. Eu não sei o que estou sentindo agora. Eu pensei em perguntar, mas se eu perguntasse, descaracterizaria a relação que pretendo ter. Não quero passar a vida jogando. Quero viver o pouco que ainda me resta. Estou farto de pessoas. Estou farto de todas as pessoas.
O Doutor nesse momento se encolheu na cadeira e deixou Pedro mais a vontade, pois teve a impressão de que o desabafo tinha começado e que seu paciente tinha finalmente se soltado.


– Farto. Por que diabos o ser humano é assim?! Por que eu sou assim?! Não aguento mais isso. Quero me dispensar desse mundo. Não é pedir demais que ele continue sozinho. Eu não quero fazer parte disso. Não quero mais contatos. Não quero mais notícias dessa merda de lugar horrível e irreal. Era tudo tão simples. A verdade. Ponto. A verdade. A verdade não é tão perigosa e essa mentira dói muito mais. “Não menti, eu omiti” é o que a maioria diz. Será que ninguém percebe que é tudo a mesma coisa. A verdade foi feita para ser dita! Ponto! Dita! Dita! Não para ser omitida, pois quando se omite se esconde a verdade e mente por omissão. É isso. Silêncio qualificado. Toda verdade não dita é uma mentira por omissão. Quando a verdade não é dita a mentira prospera. O responsável pela mentira ter prosperado é de quem sabia a verdade e a escondeu, pois sufocou tudo. Sufocou meu amor. O amor…piada pronta.

O doutor agiu como se não estivesse ali. A estratégia era justamente não questionar. Deixar aquele indivíduo problemático a vontade para ele dizer o que quisesse. Tudo estava sendo gravado e mais tarde as perguntas atravessariam aquela conversa como balas de 762.

– O amor. Amor é o sentimento que sentimos por nós mesmos e queremos que sintam também por nós. Como não? Cada um se acha mais especial que todo resto. Merece mais atenção, mais carinho, mais dinheiro, mais tudo. Ninguém que tenha esta terra sob seus pés e esse céu sobre sua cabeça está satisfeito com o que tem. Nem o mais rico e nem o mais pobre. Lixo! É para cá que trazem todo o lixo existencial do universo. É para dentro de nós que trazemos todo lixo existencial do universo. Não me escutem, por favor, sou só mais um homem perdido, triste e com um coração em pedaços.

Pedro abaixou a cabeça e ficou em silêncio por uns segundos. Quando o terapeuta decidiu romper o silêncio, percebeu que ele havia pegado no sono. O doutor pensou bastante em algumas coisas que ele havia dito. Não estava totalmente errado. Pedro dormia calmamente, era como se não estivesse mais naquele corpo. O doutor pensou na teoria da fonte, mas não demorou muito tempo nela. Sabia que seu paciente precisava apenas desabafar, pois era uma cabeça cheia, um coração de menino e uma alma grande demais para um mundo pequeno.


Por Pierre Logan
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